O Céu dos Passarinhos



                 Hoje o dia foi triste. Silencioso. Não ouvi o cantar, os assovios, nada. Ele – o marido dela –, um periquito australiano das penas azuis, pretas e brancas, também não cantou. Nada. Ficava parado, olhando para um ponto fixo fora da gaiola: o lugar onde eu a depositei ao retirar seu corpo.
                Era tarde. Ao passar pelo local, olhei em direção a eles – sempre soltando uma piada, falando algo – e a vi, quietinha, parada num canto. Cheguei mais perto e ela veio ao meu encontro, mancando, abatida. Larguei o que estava fazendo, puxei uma cadeira e sentei ao lado da gaiola. Ela foi para a porta, como sempre fazia – ávida para beliscar meus dedos e cravar suas finas unhas em minha pele. Peguei-a em minhas mãos e ela ficou ali deitada, quietinha, calma, sossegada – como nunca ficara. Meu coração se encheu de tristeza, comecei a chorar copiosamente enquanto alisava as suas penas e acarinhava sua cabeça – como ela gostava que apenas seu esposo fizesse –, enquanto ela fechava os olhos imaginando sei lá o quê. Vê-la em minhas mãos tão quieta era uma tortura, um martírio. As penas amarelas e brancas formando um contraste com a minha pele. Ela se sentia segura e eu podia ver isso nos raros momentos em que ela abria os olhos.
                Coloquei-a de volta em sua casa, enquanto eu tentava me acalmar e parar o choro – que eu classificaria como descontrolado. Podem me achar tolo: eu chorei por um pássaro. Um “simples” pássaro que, pra mim, era um alguém; um dos mais importantes alguéns que eu pudera encontrar. Ela caminhou em direção à vasilha da comida e tentou subir. Não conseguiu. Coloquei-a no chão da gaiola e ela caminhou em direção ao lugar que mais amava: dentro daquela vasilha de metal. Colocou as patas na borda e enfiou a cabeça lá, como se quisesse esconder alguma coisa. Seu marido tentou se aproximar, mas ela não deu ousadia. Ele bicou, puxou uma das penas da asa esquerda, mas dessa vez ela não reagiu. Eu, como sempre remediador, o afastei. Ele foi para longe, olhando pra sua amada.
                Eu chorava. Chorava muito. Não queria que ela partisse. “Humano idiota que chora por passarinho” – alguém poderia dizer e eu concordaria. Prefiro ser um idiota a não ter sentimentos. Parece que ela sabia que, se morresse por volta daquele horário, eu sofreria mais. Ela esperou. Quase 8h. Quando eu já estava mais calmo, notei-a caminhando lentamente, mancando, em direção a sua vasilha – SUA vasilha; ai do seu marido que ousasse comer enquanto ela estivesse se alimentando ou levaria bicadas violentas na cabeça. Ela não conseguiu subir. Aproximou-se da parte traseira, empurrou um pouco e repousou a cabeça ali, quieta, sozinha, com a respiração ficando mais lenta a cada vez que eu olhava. Logo ela – que sempre fora tão exibida inclinando a cabeça quando eu indagava “Como olha pra papai?” e ela pirraçava, olhando apenas quando minha mãe falava – resolveu se esconder. Creio que ela não queria mostrar a sua dor, nem cantá-la alto.
                Quando chegou aqui, era filhote. Já tinha o mesmo tamanho, mas era um bebê. Mesmo sendo tão simples a sua penugem, eu me encantei. Quando chegamos em casa, notei um problema: ela não voava. Tentava, tentava, tentava e não conseguia – como o pássaro de um dos meus filmes favoritos “Rio”. Parecia estar doente, mas eu não quis devolver. Ela não aprendeu a voar, apenas dava rompantes quando se assustava ou quando brigava com seu marido; mas ela já nasceu sabendo amar. E ela demonstrou o seu amor por mim, por minha mãe e pelo seu marido em cada gesto, cada detalhe; cada virada de cabeça – com a pata apoiando na gaiola –, com as acrobacias, com os pulos em minhas mãos quando eu tentava colocar a comida e, até mesmo, com os gritos matinais, sempre altos e que proibiam qualquer um de falar ao telefone. Ela gritava e quando eu aparecia, cessava. E os gritos continuavam quando eu desaparecia de seu campo de visão. Quando a comida ou a água acabavam, novos gritos. E eu podia diferenciar cada um deles.
                Ontem ela cantou pela última vez. Canto suave de passarinho. E eu senti falta, muita falta, das nossas “brigas” – sim, um homem de 22 anos idiota fingindo uma briga com um casal de periquitos australianos – e, principalmente, da sua pureza. Hoje seu marido ficou em silêncio durante todo o dia. Cheguei perto, como se ele pudesse me entender, e disse que entendia tudo aquilo. Chorei. Ele olhando ao redor, procurando, me encarando. Uma lágrima insistente, de saudade de uma “reles” – como muitos poderiam dizer – periquita.
                Ontem ela voou. Voou rumo ao “céu dos passarinhos” – como um amigo bem colocou. Restou apenas um aperto no peito, uma saudade chata, um silêncio insuportável e lembranças de cinco anos que NUNCA serão esquecidas.

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