Eu-Ator


Para quem vive o teatro no seu cotidiano, estar longe dos palcos é uma das maiores dores que pode existir. É como se uma parte do seu corpo fosse arrancada, de forma brusca, e, mesmo assim, você precisasse continuar a viver. É como uma punição.

Acho que, desde que me entendo por gente, sempre tive vontade de ser ator. Até pisar no piso de madeira daquela sala de ensaio pela primeira vez, na doçura dos meus onze anos, eu nunca havia ido ao teatro. Porém, desde aquele primeiro contato, desde aquele primeiro toque, algo surgiu dentro de mim. Até então eu não sabia, mas hoje, um pouco – bem pouco – mais velho do que naquela data, eu consigo perceber que é, e sempre foi, uma das mais belas formas de amor. Uma daquelas paixões ardentes que permanece ao longo dos anos.

Foi ali, entre a coxia e o palco, correndo por trás da rotunda ou jogando-me no carpete para encarar o teto, que eu comecei a me compreender. Primeiro enquanto criança, depois enquanto adolescente, mais tarde enquanto jovem, adulto, homem, enquanto uma criatura que poderia ser tudo aquilo que ela quisesse, mas que, enquanto tivesse aquele piso de madeira debaixo de seus pés, estaria protegido.

É engraçado lembrar de como eu era lá atrás. O garoto calado, que mal abria a boca, e que, pouco a pouco, foi se tornando falante, tagarela, brincalhão e destemido. Dentre sorrisos e lágrimas, em meio à ansiedade, ao medo e à tensão, em meio ao amor e a dor de ser ator, fui enxergando minhas diversas nuances, como se estivesse a construir a minha maior personagem, a maior e mais bela das criaturas, aquela que eu estudaria não somente enquanto estivesse ali, mas também pelo mundo afora. Foi ali, onde eu comecei a me entender enquanto Eu, parte de um Nós, mas que não seria nenhum dEles. Foi ali, enquanto eu me reconhecia enquanto sujeito, enquanto parte de um grupo – ou mais de um –, que eu pude me compreender enquanto Eu mesmo.

Quando optei por me afastar dos palcos, eu ainda não tinha a noção do quanto sentiria a falta de estar lá. Ao voltar, quatro anos e meio depois, para uma simples despedida, entrei no palco sozinho pela primeira vez. O público me fitava, mas eu nada conseguia enxergar. Enquanto as luzes me impediam de enxergar com nitidez, enquanto o suor escorria pela minha pele, enquanto o meu coração acelerava, enquanto eu cantava, tudo começou a fazer sentido.

Era ali que eu devia estar.

Era ali onde eu precisava estar.

E eu fiquei.

Foram tantas as personagens... Do sonhador ao cafajeste canastrão, do doce garoto assustado ao coronel repulsivo, da figura caricata de um problema social a um marinheiro que só sonhava em velejar... Tantas e tantas facetas, tantos e tantos pedaços de mim, tantos traços que carrego, tantos traços que jamais ousaria em carregar.

Dentre os medos, as angústias, as excitações, os aplausos, as chateações e o amor, acho que, no fim das contas, foi como a minha fala final daquela peça – da minha volta aos palcos:

“O teatro revive com atores, um tablado, o público e uma paixão entre eles. Eu amo os atores, atrizes e o público por esse poder. E quero morrer nesse palco, onde se dá essa viva alquimia. E peço mais, meu Deus! Que quando meu corpo descer à terra minha alma não suba aos céus. Fique aqui, perambulando por essas cortinas, sentada numa dessas cadeiras, fazendo estalar o tablado quando meu espírito andar sobre ele, até o final dos tempos. Como Furtado Coelho, Procópio Ferreira, Benjamin de Oliveira, Conchita de Moraes, Henriqueta Brieba, Rubens Correa e tantos e tantos. E, no fim do fim, meu Deus, que eu saia desse palco direto para o seu seio, se é que estando palco já não estarei nele, meu Deus.”

(Luís Alberto de Abreu*)

E que eu possa viver essa história de amor por longos e logos anos, com todos os seus prazeres e amolações, enquanto o meu corpo e a minha alma conseguirem ali se firmarem.

*Trecho retirado da peça “Esse Trem Chamado Desejo”, de Luis Alberto de Abreu.

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