Meia-Noite

Elise tocou as mãos enrugadas de Carol. Suas unhas estavam impecáveis naquela noite de segunda, como sempre estiveram. Carol a olhava com aquela ternura de sempre, aquele sorriso doce pelo qual havia se encantado há tantos anos.

Os bips leves do aparelho davam tom àquela cena. Oitenta anos haviam se passado, e era como se tivessem sido oito. A vida voava com uma rapidez tão grande que as vezes parecia que o mundo iria se tornar um imenso liquidificador. Elise entendia que aquele eram seus últimos momentos, mas ainda assim tinha gosto por estar viva. Sentada naquela sala. A sala da sua casa. Ligada àquele aparelho imenso que não parava de bipar (e Deus o livre de parar), ela refletia todos os pequenos momentos que havia vivido. Sua juventude transviada, suas lutas e seus gritos, cada calcinha comprada e cada sutiã que jogou fora. Sentia que a vida havia sido melhor do que imaginava. Seus dois filhos, que não eram de seu ventre, mas de seu coração, estavam criados, seus netos haviam nascido e já eram jovens. Seu grande amor continuava ali, tocando suas mãos.

A vida era irônica com Elise. Enquanto permanecia sentada no sofá creme da sua sala, a tevê anunciava mil remédios que prometiam prolongar a vida em dezenas de anos. Uma falsa imortalidade que já não dava tempo de ser aproveitada. Ela olhou para Carol, ao seu lado, e percebeu que o sono já a havia levado para os braços de Orfeu.

Elise permaneceu em um silêncio prolongado, enquanto, em sua frente, a televisão esperneava absurdos sobre como ganhar milhões riscando seis números em um pedaço de papel. E vida foi passando com os bips do trambolho que ao qual estava presa.

O relógio da cozinha badalou dose vezes. Meia-noite. Elise sempre achou significativo esse horário, e nessa noite então, ele tinha um simbolismo maior. Era cedo demais pra dizer adeus, mas já era tarde para se despedir.

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